A Trama de Queen Mantis

O thriller coreano Todos os Crimes da Louva-a-Deus (Queen Mantis, no título internacional), exibido pela SBS em 2025 e lançado globalmente pela Netflix e pelo Viki, é mais que um remake do francês La Mante (2017). Em oito episódios dirigidos por Byun Young-joo, com criação de Lee Young-jong, estrelado por Go Hyun-jun e Jang Dong-yoon, a série realoca a história para o cenário sul-coreano: uma cidade mineradora praticamente abandonada, destruída pelo desemprego que culmina em um aumento exponencial da violência doméstica. No centro da trama, existe a misteriosa Jeong Yi-shin (Go Hyun-jung), interpretando a assassina apelidada de “Louva-a-Deus”.
A história começa vinte anos após a prisão da serial killer que a sociedade acredita ter morrido na prisão. Quando um copycat aparece reproduzindo os crimes que a consagraram, a polícia se vê obrigada a recorrer à própria Louva-a-Deus para solucionar o caso. Jeong Yi-shin aceita colaborar, mas impõe uma condição: trabalhar apenas com o filho, agora o detetive Cha Soo-yeol (Jang Dong-yoon), de quem esteve afastada a vida inteira.

A relação se desenrola em um duelo psicológico, onde temas como laços de sangue e justiça com as próprias mãos entram constantemente em conflito. A investigação os conduz de volta às minas abandonadas, cenário dos crimes anteriores, e expõe uma comunidade devastada pelo alcoolismo, pelo machismo e pela miséria deixada após o colapso econômico.
A crítica coreana elogiou Go Hyun-jung pela performance de predadora contida que ora seduz com instinto materno, ora fere com a crueldade de uma assassina. Também foi destacada a coragem da trama em abordar assuntos como violência doméstica e traumas. O público reagiu bem. No Viki, a série acumula 9,5/10 em mais de 1,8 mil avaliações, prova do impacto que a produção alcançou além da Coreia.
Mas o que será que fez a série ser bem recebida? Vamos conferir os principais aspectos.
Paralelos
Um elemento que sempre prende a atenção do público são os paralelos bem relacionados com o mundo real, e a série faz isso ao transportar a adaptação para a Coreia do Sul e suas questões socioeconômicas.
A vila mineradora de Woongsan, na série, não é só cenário; é um exemplo fictício social. Quando o trabalho some, o que fica é o vazio, bares cheios e casas repletas de frustração e raiva. É ali que a Louva-a-Deus e sua imitadora são geradas. A ponte com o mundo real é sólida, pois pesquisas sobre choques econômicos apontam que aumentos acelerados do desemprego caminham junto com a alta na violência doméstica.
Na recessão norte-americana, por exemplo, aumentos do desemprego vieram acompanhados de mais agressões por parte dos homens, provando o ciclo de estresse e desejo de controle misturado à violência dentro de casa.
Há ainda um “elemento químico” recorrente na série e na literatura: o álcool. Entre famílias atingidas por desemprego, o consumo aparece como agente-chave entre choque econômico e agressão. Ele amplia o risco tanto de perpetrar quanto de sofrer violência.
Quando Woongsan nos mostra maridos entorpecidos pelas ruas, ao redor das minas, ela está reproduzindo um quadro documentado, não um clichê.

Nos casos específicos de cidades mineradoras, a evidência material é diversa, e isso torna a escolha temática da série mais interessante. Em regiões de mineração na Austrália (Bowen Basin, Queensland), pesquisas de campo apontaram maior preocupação de serviços públicos com violência doméstica em localidades que cresceram aceleradamente com o setor extrativo, combinando trabalho com maior presença masculina, longos turnos e isolamento social.
Em comunidades mongóis do deserto de Gobi, um estudo comparativo mapeou a violência de gênero associada a mudanças aceleradas trazidas pela infraestrutura de mineração, como a chegada de trabalhadores temporários, pressão sobre serviços e prazos, novas economias informais, chamando atenção para lacunas de infraestrutura e segurança.

Ainda a respeito, uma avaliação mais ampla no país indicou, anos depois, que a violência doméstica permanece uma preocupação crítica, reforçando a necessidade de políticas públicas dedicadas a zonas extrativas.
Resumidamente, o que Todos os Crimes da Louva-a-Deus enfatiza é que desemprego, álcool, isolamento e masculinidade tóxica se convertem em terror, o que se comprova com décadas de pesquisa do mundo real. Choques econômicos e a ausência do estado aumentam o risco de violência doméstica, enquanto redes de proteção e políticas públicas reduzem danos.
Ao situar essa violência no núcleo e ao redor de uma mina exaurida, a série nos entrega um cenário estrutural que permite que monstros sobrevivam, às vezes, dentro de casa.
Fontes: PMC pubmed central, Australian Institute of Criminology, Csm.uq.edu.au, Mongoly Gender Assessement, Oup Academy
Natureza ou Criação?
A série também cria uma pergunta que é o coração do enredo e não nos dá uma resposta fácil, instigando nossa mente e senso moral. A Louva-a-Deus parece ter nascido com uma frieza inata, mas também é filha de um lar abusivo e de uma cidade destruída. Então, será que o filho detetive herdou esse “sangue ruim”?
A literatura científica sustenta essa ambivalência. Em crianças e adolescentes, traços psicopáticos/traços de insensibilidade e frieza emocional mostram herança genética moderada. Estudos com gêmeos estimam que uma fração substancial dessa variação (geralmente acima de 50%) decorre de fatores genéticos, um sinal de predisposição biológica para frieza afetiva e crueldade.

Por outro lado, ambiente e trauma pesam no resultado, e muito. A meta-análise mais recente sobre maus-tratos na infância mostra uma relação consistente entre abuso físico, emocional e negligência com o aumento de traços psicopáticos na vida adulta, com efeito visível relacionado à impulsividade e à agressão. Em paralelo, uma revisão de 29 estudos indica correlação moderada entre maus-tratos a animais ou pessoas e traços de alta empatia/culpa, sugerindo que a frieza não é apenas inerente ao nascimento, mas também acrescentada em contextos violentos.
Ou seja, a neurociência explica parte do “como” e adiciona um pouco ao “quanto”.
Quando colocamos tudo junto, surge o quadro que a série dramatiza: a genética e o ambiente caminham lado a lado e, às vezes, se cruzam. Em termos clínicos, isso diferencia entre “psicopatia primária” (mais fria, baixa ansiedade, frequentemente associada a predisposição) e “secundária” (com mais ansiedade, história de abuso e reatividade).
Em amostras forenses e comunitárias, as variantes “secundárias” mostram índice maior de trauma desenvolvimental. Por outro lado, há evidências de caminhos herdáveis e não-herdáveis para os mesmos traços, reforçando que biologia não é um fator que levará à psicopatia, e trauma, sozinho, também não.

E então, o que fica? Primeiro, que não existe um gene único, nem biomarcador único. Há probabilidades que se somam a contextos (pobreza, álcool, trauma) e produzem trajetórias mais ou menos perigosas. Segundo, que trauma não “explica” tudo, mas importa, e predisposição não “condena” ninguém, mas pode amplificar o dano de ambientes hostis.
Assim, Todos os Crimes da Louva-a-Deus se recusa a reduzir o tema tanto ao mito do “gene do mal” quanto à narrativa de que quem absorve tudo ao redor se torna “fruto do meio”. E convida o público a encarar tanto a ciência quanto a estrutura social, que deixam monstros à solta.
Fontes: journals.plos.org, Science Direct, Science, National Library of Medicine, PMC Pubmed Central
Mãe e Filho
O conflito psicológico se mantém linear até o final da série, entre a mãe assassina e o filho detetive. O filho encara a mãe não só como ré sentenciada à morte, mas como a origem de um estigma que o acompanha desde a infância. O dilema íntimo, que ele teme ver exposto, “eu carrego no sangue o mesmo mal?”, se soma ao medo interno: “quanto do que sou veio dela?”.
Tudo se torna ainda mais difícil pela imagem ambígua que Yi-shin criou nas pessoas e na mídia, ao mesmo tempo monstro e vingadora de predadores de mulheres e crianças. Isso impõe a ele, como policial antes de filho, o dever de colocar a lei acima da justiça pelas próprias mãos. E a pressão aumenta quando o detetive percebe, nas primeiras conversas com a mãe, que ela gostava de matar, sentia prazer no ato.

Temos, portanto, um policial obrigado a trabalhar com a serial killer que é sua mãe, por quem carrega uma vida inteira de repulsa. O resultado dramático é um duelo de identidade: ela tenta definir quem ele é e se há algo dela nele; ele tenta descobrir se herdou, ou não, a maldade e o prazer de matar.
O arco de transformação é inteiramente de Cha Soo-yeol. Ele precisa se libertar da sombra da mãe assassina e verificar se ainda existe, ou não, na mulher diante dele, algo da mãe amorosa da infância, para romper o ciclo de mágoa reprimida e fazer justiça sem a mancha do ressentimento pessoal. Já Yi-shin não precisa se transformar. Ela sabe quem é e por que é, aceitou-se, não busca perdão e acata o que a justiça decidiu para ela.
O único desejo da mãe é saber se o filho é igual ou diferente dela.
Semelhanças
E, no final, claro, seria impossível não fazer aqui um paralelo de Louva-a-Deus com Hannibal. Ambos são dramas sobre a intimidade com o mal, mas a diferença está no cerne da relação.
Em Hannibal, o duelo se dá entre mentor e pupilo, um “predador mestre” que seduz pela linguagem, pela sofisticação e pela promessa de uma forma de transcendência desvirtuada. Em Todos os Crimes da Louva-a-Deus, o vínculo é de sangue, mãe e filho, um cordão que não se corta. Isso torna cada diálogo menos uma aula de filosofia niilista e mais um parto ao contrário, em que a mãe tenta parir o monstro no interior do filho, enquanto ele resiste, oscilando entre repulsa e a necessidade de preencher o vazio materno.

Hannibal nos convida a admirar o abismo, como se ele fosse uma moral ornamentada que faz da crueldade uma obra de arte.
Já Louva-a-Deus pergunta quem cavou o abismo. Quando a mina é fechada, quando a cidade se destrói, quando o lar é incendiado, que tipo de criatura emerge? Um exibe o selo do artista; o outro apresenta a conta do abandono.
No fim, os dois espelham seus investigadores, só que, enquanto Hannibal nos seduz a contemplar o monstro, Louva-a-Deus nos obriga a reconhecer quem o fabricou.

Vale a Pipoca?
Todos os Crimes da Louva-a-Deus é um thriller que conversa com o entretenimento, mas também nos convida a refletir no contexto social da mina que fechou, do emprego que sumiu, da violência que ficou.
O enredo convida a um passeio por teorias neurobiológicas e sociais da psicopatia, mas prefere manter uma pergunta que deixa a resposta solta no ar.

Para quem busca tensão psicológica ao estilo Hannibal e, ao mesmo tempo, se interessa por dramas sociais com dois pés na realidade, esta série entrega um bom resultado.
E aí, depois desse papo profundo sobre neurobiologia e feridas sociais, você topa encarar Todos os Crimes da Louva-a-Deus?
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