Trama de Sem Piedade

A Coreia do Sul conquistou o mundo com seus doramas românticos e com o som do K-pop. Mas a série Sem Piedade, lançada internacionalmente como Mercy for None, traz outra face coreana, um lado mais sombrio: o universo das facções criminosas.
O projeto nasceu das páginas do webtoon Plaza Wars, criado por Oh Se-hyung e Kim Kyun-tae, e foi adaptado para a TV pelas mãos de Choi Sung-eun e Yoo Ki-seong, responsáveis pelo roteiro. No elenco, a trama conta com So Ji-seob, que interpreta Nam Gi-joon, ex-gangster. Ao lado dele, Huh Joon-ho e Gong Myoung completam o núcleo principal.

A história acompanha Nam Gi-joon (So Ji-sub), um ex-gangster que, anos antes, sofreu um castigo físico por quebrar um acordo entre facções. Isso o levou a se afastar da vida criminosa, principalmente para evitar que o incidente resvalasse em seu irmão e destruísse o que restava de sua família. Porém, onze anos depois, a morte misteriosa do irmão mais novo o obriga a retornar ao submundo que quis abandonar.
A cada episódio, vemos Gi-joon mergulhar novamente no mundo de alianças instáveis, onde lealdades mudam de acordo com a conveniência. A narrativa é construída em torno da busca pela verdade e da vingança pessoal de Gi-joon.

Contando com sete episódios de menos de cinquenta minutos, a série condensa vingança, dor e ação em um thriller frenético. A recepção de Sem Piedade tem sido bastante positiva. No Rotten Tomatoes, a série alcançou 88% de aprovação. No IMDb, com nota 7,5, muitos elogiam a ambientação, a fotografia estilizada e a ação. Porém, alguns espectadores reclamam por acharem a narrativa confusa no início e outros apontam trechos de violência gratuita.
Mergulhando no Submundo
Para entender o mundo de Gi-joon, temos que conhecer um pouco sobre a máfia coreana.
Quando falamos em máfia coreana, ou jopok, falamos sobre história, política e violência urbana. Os grupos não surgiram de repente, mas foram se moldando ao longo do século XX, acompanhando as mudanças da própria Coreia.
Durante a invasão japonesa, entre 1910 e 1945, os primeiros grupos violentos começaram a se consolidar. Eram grupos locais que se organizavam tanto para resistir quanto para confrontar a yakuza (máfia japonesa), que também tentava conquistar território.
Já nas décadas de 1950 e 1960, as gangues cresceram em bairros e cidades, muitas vezes em conluio com políticos locais. O crime organizado não era apenas uma questão de sobrevivência nas ruas, mas também um instrumento de poder. Não por acaso, as repressões militares, os “crackdowns”, tentaram desarticular esses grupos, numa disputa constante de alianças e rupturas entre Estado e submundo.

A partir dos anos 1990, o cenário mudou completamente. O governo endureceu as leis, tornando a participação em organizações criminosas um crime, independentemente de atos específicos. Isso reduziu a visibilidade das gangues nas ruas, mas não acabou com sua influência. Pelo contrário, obrigou muitas delas a se sofisticarem, migrando para empresas de fachada, negócios de entretenimento, agiotagem e, recentemente, para crimes digitais.
A trajetória da máfia coreana é uma mutação constante. Se antes a imagem era representada por brigas com tacos de beisebol em becos e nas ruas, hoje o cenário é bem diferente.
Entre 2023 e 2025, o crime organizado na Coreia do Sul assumiu uma postura mais discreta, sofisticada e perigosa, como empresas de fachada, negócios imobiliários, casas noturnas, jogos online e agiotagem. Porém, é no espaço digital que os grupos encontraram um terreno fértil, expandindo suas atividades para fraudes financeiras em larga escala, golpes com criptomoedas e falsos investimentos. Em muitos casos, operam até com células no exterior, criando uma rede internacional de golpes.

A resposta do Estado, em contrapartida, tem sido dura. A Polícia Nacional da Coreia reporta operações de alcance nacional em ciclos cada vez mais curtos, tentando conter uma criminalidade que se reinventa na mesma velocidade que as autoridades tentam contê-la.
Um dos pontos mais alarmantes dessa nova fase é a união entre drogas e fraude digital. Em 2024, por exemplo, uma ação prendeu 27 pessoas envolvidas em voice phishing que, ao mesmo tempo, servia de canal para o tráfico de entorpecentes. O crime organizado se sofisticou e diversificou seu modo de lucrar, misturando diferentes mercados.
As consequências sociais são profundas. O cidadão comum virou principal alvo, especialmente idosos, jovens e imigrantes, que se tornaram vítimas de golpes de investimento ou românticos. As perdas chegam a centenas de bilhões de won a cada semestre, o que obrigou o governo a reforçar medidas como linhas de denúncia funcionando 24 horas. Ainda assim, a sensação é de que a rede de golpes digitais avança mais rápido do que a legislação consegue acompanhar.

Esse contraste também alimenta uma divergência cultural. Enquanto os doramas e filmes sobre jopok romantizam a vida de gangsters, a realidade se esconde em fraudes digitais e golpes que drenam a população. O glamour da ficção não reflete o desamparo de uma família que perdeu todas as economias em um golpe.
E há ainda outro elemento que cresceu nesse sistema: crimes digitais de gênero. O debate em torno de deepfakes e crimes sexuais online chegou às ruas e ao plenário do Congresso, pressionando por leis mais severas. Esse fenômeno faz parte do mesmo submundo digital em que redes criminosas exploram vulnerabilidades sociais e tecnológicas.

No fim, o retrato atual da máfia coreana é o de um inimigo invisível. Menos disputas violentas nas esquinas, mais dedos no teclado. Uma transformação que exige mudar todo o modo como se combate esses grupos, mas também a maneira como a sociedade coreana segue, com desconfiança em sua vida digital.
Então, quando a história das máfias coreanas aparece em obras como Sem Piedade, ela chama a atenção do público justamente porque essas pessoas carregam décadas de silêncio e medo dos crimes diversos, assim como de suas alianças com poderosos que geram vários crimes de corrupção.
A Podridão do Poder
Perigoso e, infelizmente, verossímil, em Sem Piedade, o cérebro por trás do caos de toda a história não é um mafioso: é um promotor em exercício.
Lee Geum-son usa o crachá do Estado como disfarce para alcançar seus objetivos. Ele manipula investigações, empurra facções rivais para a guerra e tenta herdar, não por mérito, mas por articulações, o submundo de Seul.
E a escolha narrativa não vem do nada.
O crime organizado na Coreia não vive só escondido nas vielas; ele encontra frestas no muro da justiça.

Esse vilão-procurador ressoa com o mundo real, o poder incomum do Ministério Público sul-coreano e o debate contínuo sobre seus abusos e reformas. Por décadas, promotores acumularam amplas regalias, como o direcionamento de investigações e o controle da polícia. Isso gerou uma pressão social por mudanças após escândalos de corrupção e uso político do órgão. Relatórios e análises recentes descrevem a necessidade de reformas para conter tais excessos, o embate entre as agências e a destruição da confiança da população no poder público.
A série explora essa contradição da presença do Estado entre o crime organizado e o poder público. De um lado, grandes corporações e quadrilhas jovens que misturam violência com fraudes digitais; do outro, a percepção pública de que, quando o poder se contamina, a lei se torna seletiva.
Sem Piedade coloca o Estado no centro da conspiração. Se o promotor abre a porta, o submundo não precisa arrombá-la.

Pontos Fortes e Nem Tanto
Falando ainda mais sobre os pontos fortes da série, a força de Sem Piedade está em sua atmosfera. A fotografia utiliza tons frios e cenários claustrofóbicos, reforçando o peso psicológico de cada cena e inserindo o espectador no submundo que parece ameaçador. Esse cuidado visual também está presente nas sequências de ação, intensas e realistas, agradando bastante aos apreciadores do gênero.
No centro de tudo está Nam Gi-jun, o protagonista que escapa de qualquer maniqueísmo. Ele não é um herói sem defeitos, nem um antagonista irrecuperável, mas uma pessoa ambígua, sobrevivente apesar das feridas profundas e dos dilemas de sua jornada.
A série também mantém um ritmo enxuto. Com apenas sete episódios, não há tempo para enrolação, e a tensão constante se sustenta pela trama de traições, segredos e lealdades destruídas.

Mas nem tudo se mantém assim. Alguns personagens secundários aparecem como figuras importantes, mas desaparecem rápido demais, sem desenvolvimento algum, o que faz com que suas ações e escolhas não importem de fato para a história.
O ritmo, embora constante, às vezes é rápido demais, apressando revelações que poderiam ter sido amadurecidas com mais cuidado. E, por fim, o tom sombrio, persistente e sem momentos de respiro, pode cansar parte do público.

O mérito maior de Sem Piedade está em como ela conversa com a realidade. A série não é um documentário, mas sua visão de facções, traições e hierarquias se espelha na máfia coreana real. Embora o crime organizado na Coreia atual tenha migrado para o digital e para negócios de fachada, a série captura a essência das disputas de poder e da violência que marcaram as décadas passadas.
Sem Piedade não é perfeita, mas ousa e é necessária. Ao preferir a violência à estética romantizada, nos dá uma visão rara da Coreia do Sul: um olhar sem filtros, sem perdão. Sem piedade.
Vale a Pipoca?
A resposta é um sim, desde que você goste do gênero. Sem Piedade não terá momentos de humor nem de romance; não espere por isso. Porém, confesso que sou suspeita para opinar, porque se tornou uma das minhas séries de ação coreanas favoritas.
Ela lembra ao público obras como John Wick, mas traduzida para a realidade coreana. Não é perfeita, mas mesmo com suas falhas, é ousada e diferente do que estamos acostumados a ver quando pensamos em produções.

Vale a pena para quem quer conhecer outro lado da Coreia retratado na ficção: menos romance e mais violência crua, com um paralelo à realidade.
E aí, depois de saber mais sobre esse mundo de sangue e vingança, Sem Piedade despertou em você a vontade de assisti-la? Será que essa versão obscura da Coreia, tão diferente dos doramas que costumam dominar os streamings, conseguiu te fisgar?

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