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Review de Gatilho (Trigger): Quando a Violência é Só o Sintoma

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Vamos falar sobre esse thriller coreano que aponta a arma para as nossas feridas sociais.

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Polêmicas à Parte

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Já de cara, a série causou barulho. Em seu lançamento, Gatilho gerou polêmica após muitos coreanos associarem a série ao trágico tiroteio ocorrido em Songdo, Incheon (no qual um pai, armado com uma espingarda de fabricação caseira, matou o próprio filho). O diretor, no entanto, negou qualquer relação entre a produção e o episódio, afirmando que não há conexão com o caso.

Apesar do contexto delicado, Gatilho conquistou o público e alcançou o segundo lugar na categoria global de filmes não falados em inglês da Netflix, mantendo-se no top 10 em 20 países, incluindo a própria Coreia do Sul.

A crítica, embora inicialmente cautelosa, acabou rendida: a série alcançou a rara pontuação de 100% no Rotten Tomatoes, sendo destacada como um dos melhores thrillers entre os K-dramas.

Enredo

Gatilho é uma série sul-coreana lançada pela Netflix em 25 de julho de 2025, escrita e dirigida por Kwon Oh-seung e estrelada por Kim Nam-gil e Kim Young-kwang.

Na trama, conhecemos Lee Do (Kim Nam-gil), um policial calmo que, por motivos pessoais, se recusa a usar armas de fogo, uma escolha que, embora incomum em muitos países, não destoa tanto da realidade sul-coreana, onde o acesso legal a armas é um processo extremamente restrito e burocrático.

Kim Nam-gil e Kim Young-kwang
Kim Nam-gil e Kim Young-kwang

No entanto, a rotina muda drasticamente quando armas de fogo ilegais começam a ser misteriosamente enviadas por serviços de entrega a civis comuns. Alguém, ou alguma organização, está por trás desses envios, e o resultado é uma série de incidentes violentos, muitos deles fatais.

Agora, cabe a Lee Do confrontar seus traumas mais profundos para descobrir quem está tentando mergulhar o país em um caos generalizado, e por quê.

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Controle

O processo para obtenção de porte de armas de fogo na Coreia do Sul é extremamente rígido, o que contribui para a baixa incidência de crimes com esse tipo de armamento no país.

Segundo as leis locais de gestão de segurança de armas de fogo, espadas e explosivos, apenas pessoas autorizadas em setores específicos, como segurança, policiais, soldados ou agentes encarregados da proteção de autoridades governamentais ou delegações estrangeiras, podem possuir armas de fogo.

Fabricantes e vendedores de armas, atletas de tiro esportivo e profissionais que necessitam de armas como acessórios para filmes ou peças de teatro também podem ter acesso, mas apenas mediante a obtenção de uma licença específica.

Além desses, caçadores licenciados compõem uma pequena parcela da população com acesso permitido. De acordo com dados governamentais de 2021, cerca de 35 mil caçadores passaram por um rigoroso processo de qualificação para obter um rifle de caça.

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Esse processo envolve 10 etapas, com dois requisitos principais: a licença de caça e a autorização de posse de arma. O candidato deve passar por um exame escrito autorizado pelo governo, sessões de treinamento em campos de tiro certificados e, posteriormente, submeter-se a exames médicos físicos e psicológicos. Qualquer condição de saúde mental desqualificante ou histórico de abuso de substâncias pode impedir o acesso à arma.

Mesmo após a aprovação, é necessário obter uma licença de porte emitida pela polícia. E, ainda assim, os caçadores são proibidos de guardar as armas em casa fora da temporada de caça, sendo obrigados a deixá-las em delegacias, sob custódia policial.

Até mesmo os policiais têm acesso restrito às armas. Elas só podem ser utilizadas em patrulhas, durante a resposta a chamados ou na proteção de autoridades. Ao retornar à base, os agentes são obrigados a devolver tanto as armas quanto as munições a um cofre de segurança máxima na delegacia.

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Embora seja permitido que usem armas para proteger a si mesmos ou aos cidadãos, na prática, o uso letal por parte da polícia é extremamente raro. Mesmo diante de crimes violentos, o protocolo parte do princípio de que o agressor não está armado, o que faz com que o uso de força letal seja rigidamente analisado e, muitas vezes, desencorajado.

É nesse cenário altamente regulado, de uma Coreia do Sul pouco familiarizada com a violência armada, que se desenrola a trama de Gatilho.

Se essa série se passasse nos Estados Unidos ou no Brasil, talvez o tema não causasse tanto impacto. Mas, ambientada em um país onde armas são praticamente invisíveis no cotidiano civil, a história ganha um peso dramático e provoca uma reflexão importante sobre nossa sociedade como um todo.

Só as Armas São o Problema?

Em Gatilho, o caos não é causado apenas pela explosão de armas entre civis, ele começa muito antes do primeiro disparo. Logo de início, percebemos como uma sociedade adoecida, que empurra o indivíduo ao limite psicológico, pode levá-lo a acreditar que a violência é uma saída. Que, no fim das contas, apenas o cano de uma arma será capaz de impor respeito. De fazer com que o mundo finalmente o ouça.

A série expõe, de forma brutal, o colapso de um sistema onde até as instituições falham em proteger, acolher e escutar. Quando armas começam a ser distribuídas aleatoriamente, o que desaba não é só a segurança, é a própria estrutura social, que já vinha se deteriorando há muito tempo.

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Não são apenas criminosos ou contraventores que recorrem ao poder bélico para se sentirem respeitáveis. Até mesmo um estudante, vítima de bullying violento e constante, quando levado ao seu limite emocional, pode transformar uma sala de aula inteira, inclusive inocentes, em cenário de tragédia, ao ter acesso a uma arma de fogo.

Talvez esse seja o ponto mais perturbador: boa parte da população já vive assediada, humilhada, desrespeitada. Carrega traumas, frustrações e dores não resolvidas. E, em muitos casos, isso se acumula até se tornar insuportável, até virar uma bomba interna prestes a explodir.

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Agora imagine se todos esses indivíduos tivessem em mãos o poder de fazer justiça por conta própria.

Gatilho nos lembra que o verdadeiro caos não nasce só das armas. Ele é alimentado, todos os dias, pelas feridas invisíveis que a sociedade insiste em ignorar.

Um Vilão Que Reflete

Quando o vilão surge pela primeira vez com seu sorriso quase encantador, é impossível não se deixar envolver. O homem misterioso prende nossa atenção de imediato. O vilão é a antítese do protagonista Lee Do, espontâneo, alegre, sorridente, prestativo. Um contraste quase desconcertante.

Rapidamente, ele se aproxima de Lee Do e assume quase o papel de um ajudante. A química entre os dois funciona bem, embora fique evidente que Lee não confia plenamente nele, e com razão.

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A construção do antagonista é consistente. Ele não é apenas o vilão pelo vilão. Foi abandonado ainda bebê, traficado, mutilado. Ele é o reflexo do que acontece quando o sistema falha de forma brutal. Suas ações não se resumem a uma vingança narcisista: são uma tentativa de denunciar uma sociedade que o criou. Ele é o efeito colateral da inércia institucional.

A série acerta ao mostrar essa complexidade sem cair na armadilha de demonizá-lo completamente, mas também sem romantizá-lo. Ainda que em alguns momentos, seus trejeitos e falas flertam com o caricato, o que destoa ligeiramente do tom mais sóbrio da narrativa. Porém, como vilão, como símbolo de um sistema que escolhe ignorar seus próprios filhos até que seja tarde demais, ele se sai muito bem.

O Gesto de Esperança

No clímax de Gatilho, Lee Do se vê no centro de uma praça aberta, cercado por civis armados, enlouquecidos, disparando às cegas em meio à fumaça densa.

Ele percebe, ali, que devolver o fogo não resolve. Que revidar não apaga a dor crônica de uma sociedade ferida. Que essa válvula de escape não silencia os gritos que nascem da negligência, da exclusão, do abandono. O problema é mais profundo que o cano de um revólver.

E então, entre os ecos ensurdecedores dos tiros e o caos espalhado pelo antagonista, que enfim conseguiu escancarar a doença social que corrompe por dentro, Lee Do avista uma criança. Um menino pequeno, perdido, chorando, com uma arma de fogo nas mãos, chamando pela mãe.

Ele corre. Não para atirar. Mas para proteger.

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Naquele instante, não era de balas que se precisava. Era de escudos. Lee Do se ajoelha entre a multidão armada e a criança. Um gesto solitário, mas retumbante. Um símbolo de ruptura. Um homem decidindo interromper o ciclo da violência com um ato de humanidade.

Ao proteger aquele menino, Lee Do se torna o adulto que o antagonista nunca teve. A mão estendida que faltou. O abraço que poderia ter impedido. Ele não atira. Ele acolhe.

E é nessa escolha, silenciosa, mas avassaladora, que Gatilho entrega sua verdadeira mensagem: há caminhos mais difíceis, mais lentos, mais dolorosos, mas infinitamente mais humanos do que a resposta fácil da violência.

Para quem souber olhar além da ação eletrizante, é esse o disparo que realmente importa.

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Vale a Pipoca?

Vale um baldão de pipoca, com certeza.

Mas essa série é para quem curte uma boa história de ação e investigação, com personagens cativantes e uma trama que vai além do que se mostra em cena, daquelas que fazem a gente refletir no silêncio do pós-créditos. E convenhamos: isso não é tão comum em obras desse gênero, não é mesmo?

As atuações são sólidas, carismáticas, e não há divisão por núcleos paralelos. A narrativa gira quase inteiramente em torno de Lee Do, os mafiosos e o vilão, o que mantém a história enxuta, sem enrolação.

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As cenas de ação são muito bem executadas, e chegam até a provocar aquela ansiedade boa: será que esse personagem vai sobreviver?

Então, se esse é o seu estilo de série, pode dar o play sem medo de se decepcionar.

Agora me conta: Você é do time ação e suspense... ou prefere um romance daqueles de aquecer o coração?